Marco Aurélio atendeu o telefone e respondeu “sim”, enquanto
seus dedos percorriam o fio encaracolado do aparelho. Pouco tempo depois, já
com a conversa terminada, encontrava-se refestelado numa cadeira próximo à
janela. De uma pequena fresta de cortina aberta ele observava a chuva que caia
fina e insistente, lá detrás de uma montanha via o sol sumindo, deixando um
ponto de luz no ar, como um botão, um pingo, um acento qualquer na rocha, na
cidade. Acendeu um cigarro. Sim, ele fuma. A cada fração milimétrica que era
consumida do objeto, mais próximo de si chegava a brasa, feito um cronômetro
marcando a finitude de seus pensamentos.
Sim - disse ele ao telefone. E depois consumiu em cinzas o
tal “sim”. Quantos “nãos” podem caber dentro de um simples sim? Pouco importa. O sim já era sim, foi sim e
continuava sim...
A campainha tocou: peeeen... Dona Lúcia, a vizinha de porta,
esboçou um sorriso largo e sufocante, disposta a engolir o interlocutor, a
porta, o andar, o prédio, o mundo. Seu chinelinho amarelo era o mesmo de
sempre, desbotado e mais gasto na parte
interna, bem na região do dedão. Ela pisava com uma intensidade notavelmente desigual,
que era impossível não olhar para o seu pé. Sempre assustava Marco Aurélio a
força de seu dedão, invariavelmente pintado de vermelho, um vermelho assustado
também, que parecia querer fugir daquela unha.
Dona Lúcia disse “sim”, com sua boca voluntariosa e seu
dedão esmagador de chinelos. Quão sim, seria o sim de dona Lúcia, perguntou-se.
Apenas um sim em contraste com um não. O sim de dona Lúcia era reto, alto e
cheio de “sims”. Um sim abarcador, largo, cosmopolita, unânime. Não podia
deixar de pensar no seu dedão... o "sim" de dona Lúcia era como o dedão de dona
lúcia. Capaz de afugentar a mais remota e vermelha possibilidade de dúvida. Era,
de fato, um sim com todo o potencial de sim. Era simsimsimsim... ecoava. Chegava
a agredir o rapaz, de tão pontiagudo.
Instintivamente olhou para o seu pé, buscando seus dedos. Eram
medianos e acomodavam-se discretamente no calçado. Neste momento, percebeu um
movimento de leve fungar que tocava intermitentemente a extremidade inferior da
porta. Aproximou-se e vislumbrou um pelo grosso e saliente que entrava e saia.
Sem dúvida, era Cardosinho, o chihuahua da vizinha. O fiapo do bigode do cão
fê-lo esquecer, momentaneamente, sobre o que pensava antes. Lembrou-se de suas
tarefas e de tudo que deveria providenciar naquele dia. Aquele dia em que havia
dito “sim”. Foi até a cozinha, tomou um copo d’água e despediu-se de dona Lúcia,
do seu dedão, do seu chihuahua e de sua
certeza voraz.
Tocou o celular. Passados alguns minutos, Marco Aurélio
respondeu “talvez”.
Apertou a tecla encerrar. Conteve um sorriso que insistia em
saltar de sua boca e cobri-lo todo de uma gargalhada tão sua, tão nua e ao
mesmo tempo tão agradável. Parou. Limitou-se a levantar os dois cantos da
boca, dizer-se, mudamente, o mais sincero “sim” e vestir-se com sua nudez. Vestiu-se
daquele “talvez” e nunca havia se sentido tão confortável na vida.