terça-feira, 2 de novembro de 2010

As cores do Jequitibá Rosa

"...do verde mais verde, ao anil mais anil,
cores do sol e da chuva, do sol e do vento,
do sol e luar. Era eu nua na rua, usando e
abusando do verbo provar."

Gonzaguinha cantado por Maria bethânia.

Era azul aquele dia de final de inverno. Em toda sua vastidão não se maculava um traço branco de nuvem sequer. Nenhuma forma desenhava ingênua sobre aquela grande tela. Os raios de sol, ofuscantes, fugiam apressados do espaço, refratavam-se assanhadamente na atmosfera e soltavam-se douradinhos sobre o castanho cacho do cabelo daquele rapaz que atravessava a rua. Os carros enfileiravam-se numa grande avenida. A maior da cidade em extensão. O trânsito por ali era intenso, já que ela ligava importantes pontos. Uma espécie de artéria urbana vital, de grosso calibre, alimentando seus principais órgãos: prédios comerciais, centro cultural, acesso a grandes bairros... atravessá-la num dia comum não se tornava tarefa fácil, nem segura, tampouco agradável. Era uma quarta-feira típica. Caos, pressa e intolerância desgovernavam as vias públicas, enquanto os sentimentos humanos, acomodados no asfalto, também eram mal conduzidos. Sinal vermelho. Os pedestres movimentavam-se com passos largos, o caminho era longo e tempo contado, era alcançar o outro lado da rua e seguir a vida.


Como fazia todos os dias pela manhã, o jovem rapaz, carregado de uma bagagem volumosa, deslocava-se junto à multidão, também apressado, também cronometrando seu tempo, também medindo seus passos. Corria para sua vida na outra margem, perdido entre mochila, bolsas, tela e tintas. Sumia sob toda a vontade de pintar e o que o ofício exigia. Impossível não pensar que um belo dia acontecia. Tinha uma luz tão convidativa que invadia qualquer coisa e refletia, dentro dos olhos, a riqueza de detalhes de cada cor. Matizes. Azul-anil, azul-celeste, turquesa, verde-oliva, amarelo-manga, rosa. Inevitável. No caminho, o jovem pintor buscava uma inspiração para expressar tanta variedade descortinada pelos feixes luminosos. Os mesmos que revelavam o castanho-claro e escuro e nem-claro-nem-escuro do seu cabelo.


Perto dali, cerca de duas quadras à frente e à direita, chegava-se a um lugarejo aprazível e muito charmoso. Uma baixa muralha de limoeiros simpáticos e aromáticos delimitava um espaço bem preservado, de grama rasteira, rente ao solo, de vivo verde, que parecia ser aparada cuidadosamente com uma pequena tesoura. Era um terreno compacto e geometricamente circular, perdido ou cravado em meio à construção civil de uma cidade contemporânea: concerto, fumaça e luzes artificiais.Era só o que havia por ali, os limoeiros, a grama e, no centro, uma imponente árvore de robusto e calibroso tronco. Uma espécie tão forte e soberana, que alguém, por encantamento ou respeito ou miudeza diante dela, resolveu poupá-la. E a cidade formou-se por toda parte, menos nela.


Por acaso ou não, conforme a crença de cada um, uma brisa leve e refrescante soprou aos ouvidos do pintor no momento em que ele passava pela entrada dos limoeiros. Caiu-lhe da mão um pincel com a ponta mal lavada de tinta rosa, ainda molhada e brilhante, capaz de rosear qualquer superfície. O cítrico aroma dos limões tomou-lhe o olfato e paladar, guiando-o para dentro do lugar, que mais lembrava um jardim.Era perfeito!- pensou. A luz parecia fragmentar-se em todas as cores de sua aquarela. Além disso, a visão daquela elegante árvore deu-lhe, antecipadamente, o esboço da pintura que procurava, e mais, trouxe uma nostalgia da sua infância. Recordou-se de quando tinha seus cinco, seis anos de idade e passava férias na fazenda dos avós. Todas as tardes ele e o avô ficavam sentados na varanda da casa, em cadeiras de balanço acolchoadas de branco veludo, que acarinhavam os dedos e toda a pele com sua maciez, onde conversavam longamente. O avô contava-lhe casos, mostrava-lhe a natureza de uma forma bem diferente. Contava o que cada passarinho, árvore, grilo ou esquilo falava e pensava. Sempre no deitar do sol, o avô fixava firmemente o olhar no horizonte e dizia-lhe sem errar uma só letra:


- Ali está, meu filho, o grande contador de histórias. O Jequitibá Rosa. Foi ele quem me contou tudo isso...


Era sempre assim que o avô anunciava mais um fim das aventuras, juntamente com o encerrar do dia, que parecia uma pintura tenra e deslumbrante. O pôr-do-sol acontecia por detrás do sábio jequitibá, e ele, sozinho no horizonte, ficava todo tomado de um brilho, como se acendesse, como se fosse ele o próprio sol. Avô e neto entreolhavam-se maravilhados, estupefatos, parecendo sempre ser a primeira vez que contemplavam o entardecer. E o avô com um sorrisinho afável no canto dos lábios, proclamava convicto, a cada dia:

- Igual a este não haverá outro, escute o que te digo. Hoje temos a melhor imagem do meu amigo jequitibá. Nem ontem, nem amanhã, nem depois de amanhã... Hoje.


Todos os dias o neto escutava aquelas palavras e ficava quietinho, pensando que aquele era sempre um dia único, especial, inigualável, porque assim lhe dissera o avô. E com certeza, fora o jequitibá que, por sua vez, havia dito ao velho... E era nessa hora que, alegremente, surgia a avó com uma jarra de limonada fresquinha e cheirosa, perfumando a paisagem e a memória do garoto, que cresceu com uma imagem tão intimamente aprofundada nos olhos, que se pode até crer estar enraizada em sua alma.


Diante daquela visão tão nova e ao mesmo tempo tão familiar para ele, o garoto, que agora se fizera homem e pintor, deslumbrava-se com o reencontro. Depois de muitos anos, revia belo e altivo, como na sua infância, o querido Jequitibá Rosa, plantado bem ali na sua frente. Sem pestanejar, foi logo tratando de montar sua alva tela no cavalete de madeira, último presente de seu avô. Dispôs as cores em aquarela, todas elas. Retirou de dentro da bagagem pinceis de variados tamanhos e formas e os espalhou por perto, ao lado das tintas. Olhou para o céu, para um lado, o outro, fitou a árvore e sorriu. Sorriu francamente como se já a conhecesse e soubesse que ela sorriria de volta. Como o fotógrafo que diz à modelo: você está linda! Como o aluno que diz ao professor: obrigado. Como o artista que diz à obra: - “Parla!”. Assim, empunhou o pincel eleito e o passou na tinta branca. Sem tirar os olhos da paisagem, marcou três vezes seu polegar esquerdo, logo abaixo da unha. Um hábito, costume, antes de começar a pintar. Gostava de sentir a tinta na pele, e que ela também o sentisse.

Pouco a pouco ia surgindo, no espaço branco, traços e formas. O caule longo, rijo, centenário, de raízes profundas, exteriorizando boa parte da memória do planeta, aparecia tímido, erguendo-se disforme. Ele começava sua obra assim, sempre pela base, pelo que sustenta e nutre. À medida que o tempo corria, as cores alongavam-se, tangenciavam-se, mesclavam-se, ainda em tons de marrom, e a árvore de estatura admirável já era tronco no final do dia. O relógio marcava seis e meia da tarde. O jovem artista, percebendo o avermelhar da paisagem, encheu-se de apetite e foi buscar uma fruta que trazia na mochila. Sentou-se no pé do jequitibá saboreando uma maçã. Pensava em como adequar as cores, os contornos, enfim, compor sua pintura. Gostaria que todas as pessoas vissem no seu trabalho, o que ele, desde menino, aprendera a enxergar: a beleza única de uma imagem, mesmo que ela se repita, incansavelmente, em todos os dias do ano. A beleza está na capacidade de se procurar o inédito no cotidiano, de se tornarem múltiplas as possibilidades, de ampliar os sentidos, os sentimentos... Sentiu esses dizeres como sussurrados no seu ouvido.

Correu o olho por toda a extensão da árvore, até a última folha que alcançou sua visão. Lembrou do avô, que ouvia o jequitibá. Por um minuto pensou tê-lo escutado também. Era assim? Seus pensamentos e reflexões, tão fortes ali, eram nada mais do que o doce e gentil falar da sábia árvore? E se fosse, seria a hora de deixa-la continuar?

Outra mordida na maçã e caiu-lhe nos ombros, delicadamente, uma folha que planava livre, desconectada do conjunto que pertencia, solta para acontecer como bem o quisesse. Depois veio um fruto, uma coisa que parecia uma hélice. Vinha rodopiando até bater-lhe no outro ombro, querendo semear. Também querendo ser. Mesmo sós, a folha e o fruto não esmoreciam diante do que pretendiam cumprir. Um sopro mais forte, então, passou por lá, varrendo os ares e fazendo ranger a madeira delgada dos galhos superiores, derrubando algumas poucas folhas. Pensou nas poucas folhas... No pouco tempo que elas têm para serem folhas daquele pé, do pouco espaço que elas têm para existirem como natureza, no pouco tempo que as pessoas têm para vê-las, no pouco que estas pessoas preocupam-se em vê-las elas próprias, por ignorância ou medo ou displicência... No pouco tempo que todo o mundo não tem. No pouco. Naquilo que é miúdo e menor, contrário de fecundante, autêntico e vivificador. As poucas folhas são “muitas” enquanto folhas que se esforçam para ser o melhor que podem, com graça e elegância. As pessoas... As pessoas andam “poucas”!

Atônito, levantou-se. Da maçã, só restava o cabo. Quietou-se alguns minutos, observando o jequitibá. O misterioso jequitibá. Seu... Seu... Seu amigo jequitibá. Sorriu. Tinha cores na cabeça. Agora via claro todas as nuances de azul, marrom, amarelo, verde, verdade. Pintar tornara-se mais do que preencher a tela, mas penetrá-la com memórias, histórias, sentimentos, provocações, ponderações, com toda sua humanidade. Sim. Com todas as cores. Estava aprendendo a usá-las, distribui-las.

Voltou à tela. Agora já se viam galhos, rabiscos de limoeiros verdejando as bordas. Podia-se até, com boa vontade, enxergar um casal passando lá no fundo, ainda tracejado. O sol já se deitava atrás do jequitibá e, embora o quadro ainda não estivesse pronto, talvez nem próximo de, ele juntou seu material. Guardou tintas, pinceis e desmontou o cavalete tão cuidadosamente, que, estivesse quem fosse por perto, poderia notar uma pequena gravação na sua madeira. Nas costas, onde se lia: “e é para não duvidares da beleza que habitas em ti”. Vestiu-se novamente de mochila e bolsas. Amanhã estaria de volta e depois e depois... Até que finalizasse. Quanto tempo levaria? Não sabia. Nem queria sabê-lo, imagino. Queria antes, misturar as cores, todas elas, olhar para os lados, norte, sul... Pintar. Queria.

Passou próximo aos limões e não deixou de senti-los. Chegou à rua, cruzou a avenida, juntou-se a toda a gente e perdeu-se na multidão multicor. Partiu satisfeito, carregado de amores, pudores, tristezas, vermelhos, verdes, azuis... Foi-se.

    (Ao som de WHITE HAT, de Thiago Pethit)

Um comentário:

  1. Eis que surge um interessante poeta-escritor-cronista, no mundo virtual das letras, tão carente das idéias escritas e dos sentimentos estampados na pele do abstrato humano. O espírito da poesia plana sobre os textos de JP sugerindo um iminente e derradeiro pouso na alma deste autor.
    http://artculturalbrasil.blogspot.com/

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