terça-feira, 23 de novembro de 2010

Ele

                                          “ … A spoonful of sugar helps the medicine
                                           Goes down…the medicine goes down…
                                           In the most delightful way.”


Ele almoçava sentado numa cadeira simples daquele restaurante vegetariano. Não estava só. Havia do seu lado qualquer companhia. Na mesa, um prato colorido preenchido com legumes e esperanças de um bom funcionamento biológico. Ao lado, um livro. Ele lia “Perto do coração selvagem”, de Clarice Lispector. Aparentava seus vinte e tantos anos, quem sabe já não completara trinta. Tinham seus olhares os mesmos dizeres da obra que devorava. Fome? Reflexão? Ambos. Por debaixo daqueles cabelos precocemente polvilhados de branco, sinalizando pouca intimidade com pentes e tesouras; debaixo daquela atmosfera sensorial vestindo calça de tecido leve, que esvoaçava a cada movimento, ziguezagueando por entre as pernas, Calçando tênis com cadarços gastos, aquele jovem desconhecido ocupava-se das suas necessidades, num dia que ordinariamente acontecia. Sempre na mesa ao lado. Por vezes gesticulava, porém sua refeição corria pontuada por grandes silêncios... Interrompidos por um movimentar de lábios contínuo, quase repetitivo, de um falar calmo, reto. Coeso. Argumentava sobre a literatura? Sobre as vantagens de uma alimentação saudável? Gabava-se? Ensinava? Discutia? Há quem discuta assim, tão indiferentemente?

Seus dedos envolviam um pequenino copo que era levado à boca e retornava à mesa. Parecia bebida quente, já que um sopro bem certeiro expulsava uma fumacinha petulante, capaz de enganar uma língua desatenta, precipitada... Selvagem. No ambiente, um líquido bem menos escaldante escorria rumo aos ouvidos, descendo por riachos, acarinhando mansamente os sentidos... Dentro daquela caixa de som cabia boa parte da natureza. Dentro dele, não sei... Estava morno feito o dia lá fora, que aquecia timidamente a face de quem atravessava a rua? Era mais um dia como outro qualquer? Bem provável. Talvez sua bebida necessitasse de mais açúcar, seu cafezinho mais pó, sua refeição mais tempero. Talvez estivesse vivendo o que se esperava, dizendo o essencial, comendo o trivial. Mas ele? Ele que queria dizer tanto... Ele tão informativo: cabeça, tronco e membros. E ao lado, seu livro. Não o abriu uma vez sequer. Permanecia intacto. Havia, talvez, uma página marcada com um pequeno filete de papel. Sim. Já conhecia o sabor da maçã. Era agora abocanhá-la por completo e negar o paraíso. Justamente o paraíso que habitava. O paraíso daquele dia, daquele almoço, daquela conversa, do tic-tac dos ponteiros do relógio, da hora que lhe dizia: Quer dançar comigo?

Embora precisasse repetir a mesma dança cansativa diariamente, preferia o tango, às vezes. Tango pra variar... Para esquecer os inevitáveis passos programados do paraíso. Talvez tenha pensado isso naquele exato instante. Ouvido Carlos Gardel cantando de soslaio, num cantinho daquele restaurante, apropriando-se dos corações, por compaixão, por puro prazer. Por una cabeza. Um sorriso abriu-se, rasgando aquela sobriedade contundente, dando-lhe a face uma concavidade. Gentil cavidade! Ligara-lhe os dois lados do rosto. Um talho em qualquer indisponibilidade que pudesse remeter. Uma brecha para o esquecimento de um problema corriqueiro: fazer compras, alimentar o cão... Atalho. Perdia-se naquele sorriso como quem se perde de uma formalidade convencional. Do dia a dia que nos afasta de nós mesmos... Torna-nos domesticados e nos oferece pílulas anti-qualquer coisa... anti-eu, anti-você, anti-ele.


Ele estava agora bem perto. Pertíssimo do seu coração selvagem. Por um minuto, que fosse, naquele dia todo.

Um comentário:

  1. Bela descrição de cenário, eu me imaginei sentada nesse restaurante com ELE...

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